3.
Acordei em 2020 e não era um sonho
Ruas livres para andar de bicicleta, sem perigo
Ar sem poluição
Menos barulho, menos buzina
ônibus e metrô vazios
fácil de achar um lugar para se sentar
Ruas desertas, sem confusão
Mas também, um exército de serventes
para que outros possam comer sem precisar cozinhar, nem limpar ou ir buscar
todos estes pelas ruas, tocando campainhas e interfones,
entregando de tudo, arriscando a saúde
prontos a se retirarem de cena
e serem substituídos por outros, assim que adoecerem
Antecipo um exército de vagantes, errantes
Já sem emprego e sem casa pra morar
passaria a viver pelos bairros,
antes que o próximo foco da doença se espalhasse
e os empurrasse para outro lugar
Quem diria que daqui de casa eu veria
pessoas morrendo aos montes
como num livro de história em que li um dia
justo agora, com tanta comida
mas com muita ganância a ponto de deixar estragar
ao invés de doar a quem precisar
Quem diria que também veria
outros se preocupando em voltar ao normal
tentando transpor o antes na vida de agora
como se fosse possível sonhar
viver o que viviam antes
Mal entenderam
que antes já houve
não há mais
A incerteza é o que há
e se faz capaz de destruir mentes
daqueles que não sabem viver sem planejar
A propósito, tem uns que planejaram bem mal
Gastaram mais com armas do que com hospital
Outros, mais com bots do que com ciência
Ignoram evidências
e agora preferem pagar caro
ferindo a igualdade humana
querem equipamentos para salvar apenas seu povo
que morre aos montes porque não há sistema privado de saúde que aguente
Do que serve um plano de saúde agora?
Fico observando propagandas
Empresas em desespero
Até nas brechas tenta-se encontrar oportunidades de consumo
tudo é oportunidade para mercantilizar
até nas dores do mundo
ofertas de alívios falso, distrações
Lives patrocinadas
Não se quer perder nada
Nenhuma chance de lucrar
Será que os donos dessas empresas e seus acionistas ainda não entenderam
que logo em breve seu dinheiro
nada valerá?
Será que haverá médicos para seu atendimento prioritário subornar?
Ou leitos e equipamentos para os tratar
Não haverá como fugir sair do país, buscando outro melhor para morar
porque eles todos, ah! irão nos barrar!
Por que ainda seguem mandando diariamente projeções
curvas, gráficos, elocubrações
criando novas necessidades
não podem vender o que mais precisamos
como num jogo maluco, incerto, continuam apostando
será que sabem que vão perder?
Porque todos perderão
Se não redistribuirmos riquezas
e repensarmos os salários,
os modelos de serviços prestados tortos, mal-remunerados
informalidade
falta de direitos
horas e horas ocupados
sem tempo para pensar
tudo está ruindo
diante de nossos olhos
é preciso se solidarizar
Para, pensa, medita
Sua vida é o hoje
O que você tem a dar?
Claudia Sciré, doutora em Sociologia pela USP