Quarentena Diários
9 min readJun 25, 2020

1.#Antes da quarentena

Moro em um quintal, típico do subúrbio em que fui criada, em que os filhos constroem suas casas nos terrenos dos pais. Sendo assim, minha casa são duas casas: na principal, moram meus pais e eu, na adicional, moram minha irmã, cunhado e sobrinho.

Meus pais foram comerciantes a maior parte da vida e se aposentaram após um AVC do meu pai que o deixou sem 70% da visão e que foi resultado de um problema no coração que o fez colocar dois stents. Na época em que se aposentaram, minha avó paterna que só teve meu pai de filho, estava viva e com parkinson. Obviamente, minha mãe não dava conta de cuidar de duas pessoas e ainda trabalhar. Eu ajudava no que podia e me concentrava em conseguir sustentar a todos nessa nova configuração familiar. Minha irmã também.

Um pouco depois a minha avó faleceu. A pressão pela garantia do sustento só aumentou para mim e minha irmã, era agora uma aposentadoria a menos, além do buraco no peito da ausência de nossa segunda mãe. Nesse período, a sociologia começava a sofrer seus ataques, já tinha perdido a sua obrigatoriedade no ensino médio e a necessidade de ser lecionada por sociólogos. Eu havia acabado de terminar o mestrado e me concentrei em passar em um concurso público, que cada um que não passava, o próximo se tornava mais raro. Em um determinado momento ficou insustentável tentar emprego na minha área de formação e fui trabalhar em um restaurante localizado em um grande shopping na Barra.

A rotina não me rendia mais de 1000 reais por mês, o desânimo com a academia e a expectativa de desemprego nas ciências sociais se tornou a expectativa de dobrar esse rendimento com uma bolsa e adiar o sofrimento de 6 dias de trabalho com 12 horas em pé e apenas uma folga semanal por quatro anos. Fui tentar o doutorado. Para isso, chegava em casa as 2 da manhã, ia dormir as 3 e acordava as 6 para poder estudar e escrever o projeto antes de ter que voltar a trabalhar. Uma observação necessária, só consegui fazer isso com a ajuda do meu orientador e de uma outra orientanda dele. Talvez nenhum dos dois entendam o quanto foram importantes nesse período, caso leiam isso aqui e se identifiquem: Muitíssimo obrigada.

Na semana da entrevista para o doutorado, minha mãe teve uma apendicite. Nessa época, minha irmã e cunhado tinham ficado desempregados juntos, conseguiram uma vaga para os dois na região dos lagos e se mudaram para lá. Eu estava sozinha com meus pais. O resultado foi que durante a internação da minha mãe, meu pai ficava com ela durante o dia e eu saia do trabalho e ia dormir com ela. Foram quatro dias assim, dormindo com o braço amarrado na grade da cama dela, com medo dela chamar e eu não ouvir de tão cansada que estava.

Na manhã do último dia, tinha a entrevista. Acordei mais cedo, sem revisar nada do meu projeto e me dirigi à faculdade. A entrevista foi horrorosa, não conseguia responder aos entrevistadores. Estava exausta e não havia estudado o suficiente. Sai de lá e fui para o trabalho com a certeza de que não tinha passado e que a rotina de fazer café, servir sobremesas e bebidas, lavar pratos e finalizar refeições continuaria por um bom tempo. Por algum motivo, consegui entrar no programa. Porém, sem bolsa. Eu era a próxima a receber, tinha uma possível de uma aluna que pediu licença maternidade, mas não me informaram disso. Passei seis meses contando com a ajuda dos outros para conseguir passagem e dinheiro para o bandejão. No final desse semestre, já pensando em trancar e voltar a trabalhar, recebi a noticia da bolsa.

Pela primeira vez na vida ia receber para estudar e poder só estudar. Mas o medo do desemprego me fez dobrar a aposta e assumir também uma vaga na graduação de letras-inglês. Ok, estava ganhando o dobro do que ganhava no restaurante para estudar. Enfim, um alívio. Planejei tudo para que graduação e doutorado terminassem no prazo e quase juntos. Cumpri rigorosamente os prazos para não atrasar nem um, nem o outro. Até a pandemia.

#O isolamento social

O primeiro baque foi o fato de que agora tenho um sobrinho, minha irmã voltou a viver com a gente aqui em casa e meu cunhado continuou trabalhando na região dos lagos. O sobrinho durante o dia fica com a minha mãe, para a irmã trabalhar. Minha irmã trabalha em hospital e o hospital dela se transformou em um covidário. Ou seja, logo na primeira semana, tive que separar minha irmã do filho com medo de que meus pais pegassem essa doença. Virei a megera da casa e a cada grito e choro da minha irmã, uma parte de mim se quebrava junto. Logo na primeira semana com a gente, meu sobrinho apresentou uma tosse e uma febre baixa. Cuidamos como se fosse alergia, mas duas semanas depois a minha mãe também estava tossindo. Mais duas semanas e eu estava com a tal tosse.

Minha irmã quebra o pé em dois lugares e ganha um mês de licença em casa. A minha tosse evoluiu para um quadro em que não conseguia comer nada, nenhum antialérgico funcionava, não conseguia dormir e o peito queimava. Não demorou para o veredito: suspeita de covid. Orientada por um médico, foi indicado isolamento dentro de casa, sem contato com nenhum outro morador e que só saísse em caso de falta de ar aguda direto para o pronto socorro.

Passei do dia 08 de abril a 02 de maio sem dormir, porque deitar era impossível e tinha crises de tosse de duas em duas horas. A cada duas horas acordava sufocada pela tosse. Era desesperador não conseguir parar de tossir e ouvir minha mãe do outro lado da porta se segurando para não me acudir e aos prantos. A sinfonia noturna era tosse e choro.

Tudo que me diziam era para ter paciência e beber bastante líquido. Tomar banho me deixava exausta, falar me deixava exausta e com uma tremenda crise de tosse, arrumar a cama, ficar sentada no computador, qualquer coisa básica do cotidiano era muito difícil de fazer. Faltava fôlego. Como estava isolada, minhã mãe passou a fazer absolutamente todo o trabalho doméstico sozinha e, inclusive, deixar na porta a comida para mim. Meus dias ficaram enormes sem dormir e sem nenhum trabalho. Passava o dia lendo noticias sobre covid, livros e mergulhando na tese que passou a ser ficção.

Na segunda ou terceira semana, o orientador sugeriu que fizéssemos reuniões de orientação coletiva. A princípio, fiquei irritadíssima em pensarem em produtividade com o mundo caindo lá fora e eu doente aqui dentro. Porém, tenho que confessar que durante esses dias totalmente isolada e trabalhando muito para ocupar a cabeça e esquecer o risco de internação ou morte meu e dos meus, ver meus companheiros de trabalho toda semana era um respiro de normalidade e interação social. Mais uma vez, meu orientador tinha razão: essas reuniões são fundamentais.

A cada semana, meu quadro oscilava, mas não cedia. Até que dia 02 de maio, tive uma das piores crises de tosse: a tosse agora era vômica e purulenta. O médico já tinha me orientado que qualquer piora do quadro, era para me dirigir a emergência. Lá fui eu receber a noticia de que o exame só era indicado pra casos hospitalares e de que eu estava com uma traqueobronquite séria, porém — para alívio de todos — sem indicação de internação. Voltei para casa com os medicamentos que me fizeram passar a dormir 5 horas, porém não solucionaram a tosse.

Nesse momento, pensava em como fazer com a tese sem ter feito o campo, como adaptá-la para concluir. Até que veio a notícia de possível prorrogação e me fez sonhar em fazer o campo posteriormente. O desespero foi ver o programa nem se movimentar para garantir esse alívio para a gente. A preocupação em como fazer a tese, então, virou como fazer a tese trabalhando em um restaurante como estava antes do doutorado. Como terminar a tese e a graduação trabalhando. O doutorado continua a contar no relógio, mas a graduação não. No meio de tudo desabando, o programa tirou de mim a possibilidade de um respiro por mais dois meses. Agora preciso abandonar a pesquisa que me debrucei nos últimos dez anos para criar em dois anos uma nova tese de doutorado.

Mesmo doente e debilitada, retomei minha posição de representante discente da turma de 2018 e junto com os demais representantes, começamos a nos articular com os colegas. Na primeira reunião, éramos 50 compartilhando a mesma angústia e o mesmo alívio. Nos ver como grupo em uma pós em que o trabalho é tão individualizado é um quentinho no coração. Ver gente dentro de mais de 40 dias totalmente isolada, era a injeção de ânimo que precisava. Por outro lado, todos nós tememos não conseguir concluir a tese, todos nós estamos angustiados com a falta de expectativa para o futuro, todos nós estamos atropelados com a mudança repentina de realidade, o baralhamento entre vida privada e pública, trabalho e casa.

Recebi nesse período notícias de colegas trabalhando com entrega, outros que os pais tiveram redução de jornada e salário, outros que estavam presos em outras cidades, outros que pais e avós adoeceram de covid, outros que não estavam dando conta da sua jornada de trabalho doméstico, aula e cuidado dos filhos e a jornada de trabalho da pós. Eu mesma aqui em casa, recebi nesse período a notícia de desemprego do meu cunhado.

Nos dias que seguiram, o desânimo bateu muito forte. Apesar de toda a mobilização, não conseguimos a única garantia que precisávamos com a justificativa de prejuízo de uma suposta geração futura que não sabemos sequer se terão as nossas bolsas. Todo nosso trabalho de então e a partir de então é de construir um Programa que seja o coletivo que nos acolheu naquela reunião de 50 pessoas. Nos organizarmos é a melhor forma de garantir nossos direitos enquanto pós-graduandos, cientistas sociais, docentes, pertencentes a universidade pública — todas essas categorias amplamente ameaçadas e desrespeitadas nos últimos anos. É, também, a melhor herança que podemos deixar para a próxima geração de discentes: uma comunidade articulada para trabalhar junto, dialogar abertamente e um sentimento de pertencimento.

Participei disso tudo ainda doente e não tenho dúvidas de que cada dia gasto em discursos longos e falas emocionadas adiaram um pouco a minha recuperação. Duas semanas atrás, uma amiga de infância que hoje é médica me mandou procurar um pneumologista, precisava investigar essa tosse. Fiz os exames, inclusive o covid — tendo que pagar por ele e arcar com mais essa dívida — e a pneumo percebeu um quadro de asma que aflorou após a infecção viral.

Falar muito ainda está difícil — e veja só, sou professora e pesquisadora. Algumas atividades cotidianas como faxina, passear com cachorros, cuidar do quintal, colocar o lixo no latão do condomínio, ainda são feitas sem fôlego e em um ritmo novo. Estou tendo no final desse longo período que reconhecer o meu corpo. Junto com o processo de reconhecimento do corpo de minha tese.

Curioso, é que estamos em um tempo suspenso, mas que grita por celeridade e produtividade. Russell em seu ensaio “o Elogio ao ócio” fala de como a guerra apontava para a direção oposta ao do produtivismo, do desenvolvimento e do progresso. A crise é o convite que precisamos para repensarmos a vida, nosso corpo, nosso trabalho. Mas todos viramos subitamente após o decreto de quarentena uma espécie de coelinho da Alice, que está sempre com pressa atropelando o luto pelos nossos mortos, a recuperação de nossos doentes, a melancolia da perda de uma vida que não podemos levar do mesmo modo.

Nesse tempo repensando o corpo — o meu, o da tese, o da pós e o social — , tomei um chega para lá bem dado de uma amiga da qual apresentei o trabalho em uma das reuniões de pesquisa (não falei que elas foram ótimas?). Ela afirmou que não mudaria a pesquisa dela porque não gosta de se sentir acuada. É a mais pura verdade, passei esses meses todos acuada. Acuada pelo isolamento, acuada pela doença que me impossibilita fazer tarefas básicas, acuada pelo programa que me atropela querendo voltar a contar o calendário e as aulas sem me garantir financiamento, acuada pela universidade que quer voltar com a graduação, acuada pelas necessidades materiais que me deixam com medo do futuro, de não consegui concluir o doutorado, de não conseguir me sustentar, enfim, acuada pelo medo de falhar, pelo medo de fazer uma tese aquém do que estudei até agora.

Minha amiga está certa: também não gosto de me sentir acuada. Não vou me tornar o coelho da Alice, sempre com pressa sem saber para onde vai. O gato era muito mais esperto: “Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve”. Porém, eu sei para onde quero ir e não vou aceitar qualquer caminho. Ano que vem ou quando então puder, irei a campo. Não mexerei em uma vírgula do projeto de tese feito até aqui. A pandemia me coloca em outro ritmo, assim como meu corpo. Agora é aprender a viver e respeitar essa nova temporalidade

Samantha Gifalli

Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ.